Dissertações sobre tudo e mais alguma coisa, sobre nada também. Os pensamentos e ideias que saem da distorcida e estranha mente do BaKano, aquele que em breve será das personagens mais aclamadas do Mundo em particular e de Portugal em geral...
quinta-feira, março 31, 2022
Reflexões em tempos de Guerra #24 - 34 dias depois
Não consegui fazer uma análise detalhada no dia 24 ou 25 de Março, pela altura em que fez 1 mês da Invasão do Putin à Ucránia. Mas como Fevereiro tem apenas 28 dias, hoje dia 30, é o 35º dia e por isso posso fazer agora uma retrospectiva dos anteriores 34 dias de uma guerra, apesar de haver gente que a queira chamar de outra coisa e o ex-espião formado em Direito Internacional virado comentador odiado diz que ao abrigo da Lei não é uma guerra porque não houve declaração de guerra formal de parte a parte. Como eu até à data de hoje escrevi 24 textos aqui (23 reflexões, como eu lhes chamei, e o texto introdutório sobre o conflito, fora mais comentários e posts no Facebook e Twitter, tenho muito material para me permitir para recapitular antes de fazer mais algumas previsões (fora as que já fiz antes).
Ainda antes do 24 de Fevereiro, eu escrevi esta parte nesta publicação do Facebook, sobre o que eu achava que iria acontecer (baseado naquilo que tinha sido sugerido por vários especialistas/analistas):
As tropas da Crimeia vão cortar o Leste e as tropas na Bielorrússia podem chegar a Kyiv num instante, mas até podem nem se deslocar para lá (a sua presença e a ameaça que representam são um poderoso dissuasor por si mesmos).
O mais provável é que será como na Geórgia e eles apenas tomarão o Leste da Ucrânia (que ficará com as repúblicas auto-proclamadas).
Expandido um pouco estas previsões, havia a ideia que o objectivo era chegar ao Rio Dnipro que corre de Norte a Sul e de certa forma divide a Ucrânia em duas e que os russos conseguiriam fazer isso em relativamente pouco tempo, usando o clássico movimento de tenaz (pincer movement), o duplo envolvimento para cercar a parte a Leste do rio, com as tropas provenientes de Sul, como escrito em cima, e outras provenientes de Norte (as que entraram pela região de Kharkiv). Por diversas alturas nestes dias a ideia que estava sempre presente era o regresso da Guerra Fria em que agora a Ucrânia tomaria o papel da Alemanha dividida em 2, a do Oeste apoiada pela NATO e a de Leste sob domínio de Moscovo. O Rio Dnipro seria como o novo Muro de Berlim, mas desta vez uma verdadeira barreira natural a separar os 2 blocos.
Nunca pensei que as Forças Armadas ucranianas aguentassem uma guerra convencional tal como tem acontecido. O consenso geral de quase toda a gente era que as defesas ucranianas colapsariam em poucos dias, não aguentado a grande pressão, e o maior poder de fogo, dos russos e com muitas unidades retirando-se para o oeste do país, formando uma linha bem atrás do Dnipro (para ter uma margem de segurança, uma linha a passar por Zhytomyr e Uman para se ter uma ideia). O que haveria depois seria uma grande resistência ao estilo dos insurgentes no Iraque, só que muito mais frequente e muito mais violenta.
Sendo assim não é de estranhar que os Russos pensassem o mesmo também e tenham planeado uma campanha, ou operação especial como eles continuam a dizer, para poucos dias. A maior diferença prende-se com a ideia que Kyiv cairia mesmo e os Russos instalariam um novo governo e controlariam
o país. Eu não pensava que iriam tão longe nem que fosse tão fácil controlar o país todo, e acho que mesmo tendo-me enganado no que aconteceu até agora, esse aspecto ficou comprovado que era uma ilusão russa.
A verdade é que ao fim dos 34 dias o impensável na altura é agora uma possibilidade! Escrevi noutro texto algures (achava que sabia onde mas agora não encontro, depois adiciono aqui a referência quando encontrar), a Ucrânia tem agora uma boa hipótese, eu digo mesmo 50% de obter uma vitória táctica global no terreno (estrategicamente eles já ganharam esta guerra). A Ucrânia já teve alias várias vitórias tácticas: a captura de Kharkiv, a Batalha de Kyiv (tentativa de cerco e subsequente captura da capital) e o avanço sobre Mykolaiv (que fazia parte do avanço maior sobre Odesa, o verdadeiro objectivo) que foi repelido e até mesmo contra-atacado em parte. Mas um dos melhores exemplos de vitória no terreno que serve para mostrar a possibilidade futura é o a região (oblast) de Sumy onde não só as forças ucranianas evitaram a conquista da cidade pelos russos como depois lançaram uma contra-ofensiva que empurrou as tropas russas de volta para a fronteira!
Isto é mesmo impensável, algo que eu nunca, nem a maioria, senão todos, dos analistas, imaginaria acontecer. As melhores unidades ucranianas estariam ao fim de 2~3 semanas completamente fora de combate, as defesas deles completamente sobrecarregadas e na prática anuladas, não era suposto os ucranianos terem blindados, muito menos tanques, nesta altura para retirar, quanto mais contra-atacar!
Volto a usar dois adjectivos que me foram muito comuns nas reacções dos primeiros dias: o que os ucranianos conseguiram fazer (na defesa e no contra-ataque) é chocante e surreal!
Eu queria realçar sobretudo aquilo em que errei, e não aquilo em que acertei, nesta análise retrospectiva mas tenho de destacar uma pequena acção e a minha reacção, porque só dias depois me apercebi da importância do momento e de como acabei por, sem saber bem ao certo, prever em cheio o que aquele momento significava. Há 4 semanas atrás eu reagi a um tweet com uma foto dos ucranianos perto de Ivankiv, a noroeste de Kyiv e sensivelmente a meio do caminho para Chornobyl. O tweet sugeria que os ucranianos tinham reocupado (em parte) esta cidade, o que permitiria controlar as vias principais que por ela passam, e comprovando-se o caso isto era uma machadada gigantesca na operação russa de captura do Kyiv. Achei mesmo que se os ucranianos controlassem Ivankiv, eles iriam isolar as tropas russas a sul desse ponto e estava tudo acabado, nunca mais os russos conseguiriam fazer algo em relação a este avanço (ou frente). Durante os próximos dias continuaram a haver avanços russos e combates com troca de posições em redor de Kyiv e eu pensei que aquilo teria sido uma acção isolada, provavelmente de forças especiais, na retaguarda russa para atacar a logística ou simplesmente causar atrasos. Mas surpresas das surpresas foi mais ou menos por essa altura que o avanço principal russo parou! E aos poucos, depois disto, as forças ucranianas recuperaram algum terreno no noroeste de Kyiv.
Pensei que me teria enganado mas na verdade aquela acção em Ivankiv foi uma forte prova de que a táctica ucraniana estava a resultar e um dos primeiros sinais, que passou sobretudo despercebido por parecer insignificante, do volte-face que agora se observa (com os russos a admitir que não vão avançar mais, comprovado pelo facto de estarem a assumir posições defensivas nas actuais linhas)
O que contribui bastante para este sucesso táctico, e também estratégico, da Ucrânia, é o forte apoio indirecto da NATO e da UE. E isso inclui as sanções aplicadas à Rússia que já criaram divisão interna (nem que seja entre o Putin e os oligarcas que há muito o apoiam). Muita gente achava, ou ainda achará, e eu também pensei o mesmo, que as sanções não funcionariam porque iriam causar um impacto reduzido e sobretudo porque não ia haver união e coesão sobretudo na UE, onde o interesse nacional dos países se sobreporia aos interesses globais do bloco. Nunca eu pensei que países como a Alemanha e a Finlândia, tão dependentes da energia (petróleo mas sobretudo gás) russa avançassem com sanções sob o risco de ficarem sem energia para a sua indústria e sobretudo sem gás para as pessoas aquecerem a sua casa. Mas confirmou-se o que eu achava: a Rússia é mais dependente do dinheiro que vem da Europa do que a Europa é dependente dos produtos que vêm da Rússia. Vejam que a Rússia ameaçou sanções retaliatórias mas não reduziu, tampouco fechou, as torneiras dos gasodutos! Acho notável.
E aos poucos a Rússia começa a parar, faltando dinheiro, produtos nos supermercados e dentro de pouco tempo vai faltar peças para reparar equipamento militar, até mesmo para continuar a extrair petróleo ou gás. Porque apesar dos russos terem gigantescas reservas naturais no seu território, os equipamentos que permitem extrair e processar esses recursos vêm quase todos de fora. Quando for altura de fazer manutenção e reparação ficarão de mãos a abanar. Há quem pense que a Rússia ainda é a União Soviética, que fabricava tudo ela própria (até deixar de poder fabricar e falir) mas agora a própria indústria russa está completamente dependente de importações externas, até mesmo a sua industria militar. Já apareceram notícias dando conta da única fábrica de produção de tanques ter parado completamente, e é preciso ver que era suposto terem produzido e entregue cerca de 2300 novos tanques T-14 Armata entre 2015 e 2020, mas as sanções que foram impostas em 2014 depois da anexação da Crimeia atrasaram tudo (falta de componentes), tendo sido apenas produzidos cerca de 100 tanques de teste.
E a outra ajuda indirecta é o grande fornecimento de armas, nomeadamente os mísseis anti-tanque portáteis, que permitem à infantaria ligeira ucraniana continuar com os seus ataques na retaguarda das linhas russas, causando a confusão e o pânico e perturbando imenso a logística. A NATO, e outros países alinhados, não podem oferecer uma ajuda mais directa (colocar tropas no terreno ou impor a famigerada no-fly zone); isso é uma impossibilidade e apenas os alucinados podem achar que isso seria uma solução. Só se for a solução final, pois uma escalada dos confrontos só trará mais sofrimento para todos os lados e já existe que chegue. E quanto mais escalar o conflito, mais probabilidades temos de um holocausto nuclear. Eu preferia viver (se chegasse a sobreviver) sem uma coisa dessas...
É verdade que o Zelenskyy continua sempre a pedir intervenção da NATO ou outros países, mas isso faz parte do papel dele. Eu comparo a um vendedor a regatear uma venda (neste caso está a vender a necessidade do apoio à Ucrânia) e pedindo um preço muito alto (intervenção directa) obriga o comprador (a UE e NATO sobretudo) a oferecer mais do que inicialmente estava disposto a dar.
Eu falei em coesão na UE, coisa que muita gente achou que ia acabar e ia cada um para o seu lado, e estamos a assistir a um reforço da União, mas ainda parece existirem alguns que vão tocando uma música diferente, como por exemplo caso da Franca e do Macron, que insiste em manter dialogo com o Putin quando outros, incluindo o Biden, já admitiram que não tem como continuar a negociar com ele, Sendo assim, apesar de parecer mau e eu também achar que a partir duma certa altura não vale a pena insistir na conversar e chega o momento de agir, tenho de admitir que é preciso manter sempre uma janela de dialogo por mais tempo quanto possível, porque por enquanto ainda só existe um teatro de operações e apenas 2 países estão em guerra directa um contra o outro. A Franca é das poucas potências globais do lado de cá (o chamado Ocidente) que está disposta a assumir o papel de negociador e por isso o Macron continua a fazer as suas chamadas regulares ao Putin que na verdade não trazem nada de novo (o Macron pede que ele pare com a invasão e o Putin ou ignora ou só diz que não) e não servem para mais nada a não ser manter a via de comunicação aberta. Não creio que o Macron é inocente nem tampouco cínico ao manter esta postura. Os próprios diplomatas turcos, que conseguiram organizar estas últimas negociações que parecem trazer um progresso importante, afirmaram que não se pode deixar de falar com a Rússia porque depois deixa de haver forma de negociar uma possível paz, se ninguém está disposto sequer a ouvir o que eles possam ter a dizer.
E obviamente não posso deixar de falar da fantochada dos últimos dias: a Rússia a afirmar que a primeira fase da "operação militar especial" terminou, onde todos os objectivos foram conseguidos, e que agora vão se concentrar na verdadeira, e única, razão para terem invadido, o Donbas! Afinal tudo isto foi apenas para garantir a segurança do Donbas, e os outros avanços e ataques eram só uma (gigantesca e muito custosa, tanto em meios humanos como materiais) manobra de diversão! Pois claro que foi, esta-se mesmo a ver!
Nesta altura tenho que voltar ao primeiro capítulo desta minha análise retrospectiva, pois afinal esta justificação que agora surgiu bate certo com o que se pensava e eu próprio tinha também previsto. Quer dizer, uma versão mais pequena, uma vez que eu achava que iriam ocupar todo o Leste da Ucrânia (para lá do rio Dnipro). Como depois escrevi na reflexão #4 eu mais tarde apercebi-me que um dos objectivos principais seria ocupar toda a costa ucraniana (e assim cortar o acesso ao mar). Com o Donbas ligado à Crimeia por terra e depois continuando até à Transnistria, a Rússia poderia criar aquilo que se chama de Novorossiya com um território pouco mais pequeno que o projecto, e este projecto da Novorossiya é um outro argumento em favor da justificação apresentada no video sobre os recursos (aquele sobre o qual eu falo na reflexão #4).
Mas não quero perder mais tempo neste tema da desculpa, ou revelação, dos russos. Eu sei que para aqueles que não acreditam, ou não querem acreditar, que o Putin queria mesmo era controlar a Ucrânia como parte do seu novo Império Russo (já li muita gente mencionar que a Rússia ao contrário de muitos países europeus e dos EUA nem tem sequer um historial de imperialismo, mas para eles eu tenho este meme que fiz) pois é por demais evidente que isto é uma tentativa de salvar a face e de terem um discurso de vitória para dentro, para o povo russo.
Mas agora vou pôr o meu chapéu de adivinho (ou de profeta) e fazer uma previsão para o futuro: esta vitória nem sequer vai acontecer! É o que eu acredito agora, depois de já ter visto o impensável acontecer, como escrevi ali mais em cima.
Cercar as forcas ucranianas no Leste, aquilo que é chamado de JFO (Joint Forces Operation), está longe de ser garantido, nem sequer contando com o desvio de meios (humanos e materiais) para essa frente (oriundos das outras). Eu digo isto porque os russos estão bastante desgastados e parece-me que é claro no presente que já gastaram muito do stock de munições. Também não podemos esquecer que era aqui que estavam colocadas as melhores tropas ucranianas, com linhas defensivas muito bem preparadas. Basta ver que os ganhos no Donbas pelos russos e separatistas não são nada de especial, tendo em conta que nesta frente eles não tiveram os mesmos problemas de logística nem os ataques na retaguarda que as outras frentes, sobretudo a de Kyiv, sofreram. Os ganhos neste território da Novorossiya parecem ser melhores do que realmente foram, devido ao avanço pelo Sul (as tropas provenientes da Crimeia) e o cerco a Mariupol, assim como ao avanço daqueles que vierem do Nordeste (região de Kharkiv). Mas ao fim destas semanas todas, nem Mariupol foi ainda capturada, nem as tropas vindas de mais a norte (que tiveram de contornar Kharkiv pois aí falharam também) conseguiram iniciar sequer o cerco das posições entrincheiradas das forças ucranianas. O esperado grande avanço com progresso importante oriundo do território separatista nunca chegou a acontecer.
Agora sim, os russos vão tentar o tudo por tudo nesta região, mas eu acredito que os ucranianos vão também conseguir enviar os seus próprios reforços, apesar dos russos tentarem segurar o máximo de unidades ao assumir as posições defensivas nas outras frentes.
E será que vai haver a possibilidade dos russos retomarem o ataque a Kyiv caso a Ucrânia dedique demasiada atenção e meios para segurar o JFO? Sim é uma hipótese mas não acho que consigam sequer fazê-lo (falta de motivação, falta de capacidade mesmo, devido aos problemas que continuam a afectá-los e para os quais não parece terem solução) mesmo que o queiram fazer e o Putin lhes ordene.
Tudo isto é mais ou menos provado pelos desenvolvimentos de ontem nas negociações na Turquia. Tal como foi anunciado (e eu já comentei na reflexão #23), os russos aparentemente aceitam agora que a Ucrânia adira à UE. Eu continuo convencido que essa vontade de adesão foi também um dos motivos para a invasão do Putin, e o facto de eles agora cederem nessa exigência mostra que os russos estão agora cientes que está difícil conseguirem atingir um qualquer objectivo que permita o Putin anunciar que alcançou a vitória e a operação atingiu o desejado.
Um desfecho deste género depois do Putin começar uma guerra contra o vizinho mais pequeno e mais fraco e ser derrotado em quase todas as frentes vai ser muito difícil de aceitar na Rússia. Para mim tenho poucas dúvidas que será o principio do fim do actual regime em Moscovo. E digo regime porque não podemos ter ilusões; a Rússia é supostamente uma democracia mas o Putin está no poder desde o virar do século, há quase 22 anos (os 4 anos em que foi o primeiro-ministro do Medvedev foi só um subterfúgio para contornar o limite de mandatos consecutivos), e alguém estar no poder tanto tempo só acontece naquelas democracias onde as eleições são "estranhas", como até as da Rússia (onde em alguns círculos eleitorais o Putin obteve mais de 100% dos votos, ou seja contaram ainda mais do que o número de votantes). A Rússia na verdade nunca experimentou uma democracia mais normal, onde se vai alternando os líderes e os partidos no poder, uma vez indo mais numa certa direcção (tipo nacionalismo) e de outra indo na direcção oposta (mais abertura e diálogo com parceiros europeus). Pode ser que o desenlace após o fim desta guerra fracassada traga finalmente uma mudança naquele enorme país, que malta que não se lembra, muito menos tem saudades, dos "velhos tempos de glória" assuma o poder, e possa iniciar então uma verdadeira nova era de maior amizade com os vizinhos e maior cooperação com as comunidades internacionais. O mesmo caminho que muitas outras nações da antiga Cortina de Ferro (centro e leste europeu) iniciaram, como a própria Ucrânia que passou por muitas dificuldades e tempos conturbados, com divisão e confrontos internos, até finalmente encontrar uma nova identidade mais própria que esta guerra aliás apenas vai cimentar de vez.
Se conseguirmos evitar uma escalada do actual conflito e evitar o envolvimento directo de outros países vizinhos (que empurraria a NATO para a guerra mais tarde ou mais cedo), evitamos a Terceira Guerra Mundial (na verdade a quarta, pois a terceira foi a Guerra Fria) e o mundo ficará realmente um lugar ou pouco melhor a médio-longo prazo.
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