quarta-feira, março 30, 2022

Reflexões em tempos de Guerra #23 - Sobre a recente ronda de negociacoes na Turquia


Antes de escrever minha longa dissertação sobre o (mais de) 1 mês da Invasão do Putin à Ucrânia (farei isso hoje, é uma promessa que não vou quebrar... Talvez... Espero que não...) deixem-me escrever alguns parágrafos sobre as recentes conversações de paz em Istambul entre a Ucrânia e a Rússia. Isto é basicamente o mesmo que escrevi ontem no Twitter, um pouco expandido, e baseado numa outra thread da Anastasiia Lapatina (uma jornalista ucraniana que se encontra actualmente em Lviv, salvo erro) onde ela destacou os pontos principais, pela perspectiva ucraniana.
Quero deixar o aviso prévio que não vi notícias hoje sobre as negociações, então tenham isso em consideração se notarem que algo que eu escrevi não corresponde aos desenvolvimentos mais recentes.
Portanto, a primeira nova ronda de negociações que ocorreu ontem parece ter trazido um verdadeiro progresso e para mim isto faz todo o sentido, já que a Rússia não está mais em condições de simplesmente ditar os termos que pretende e estará disposta a ser mais flexível a negociar.
Então o que é que eu penso sobre o resumo do dia? Vamos passar ao que eu acho serem os pontos principais:

Em relação à Ucrânia aceitar a neutralidade e não aderir à NATO, isto está perfeitamente certo para mim e considero que é o cenário ideal. Ser um país neutro não significa que a Ucrânia não terá protecção de outros países, pois um país não precisa de ser membro da NATO para ter tratados de segurança com outros países, incluindo países membros. E peguemos no exemplo da Finlândia, que não é membro da NATO (por enquanto, pelo menos), mas as suas Forças Armadas estão perfeitamente integradas com a NATO, mais até que os membros mais recentes da Aliança, aqueles que ainda usam equipamentos da era soviética. O que é realmente surpreendente, para mim pelo menos, é que a Rússia parece não ter mais reservas em relação a adesão da Ucrânia à UE. Eu mencionei antes, diversas vezes até, que o Putin também não aceitava isso, mas para evitar uma aliança militar com o Ocidente, parece que ele precisa permitir uma viragem sócio-económica para Oeste (e rumo à UE). Eu acho que essa mudança é um compromisso em troca da Crimeia.

O anunciado em relação à Crimeia e ao Donbas, no sentido de que não há decisão agora, mas eles continuarão a discutir com mais detalhes o estado da Crimeia e deixarão o Donbas para um futuro encontro entre Zelenskyy e Putin, é muito sensato. Mas porquê duas decisões diferentes? Porque as 2 regiões não estão na mesma situação: A Crimeia está totalmente anexada mas o Donbas ainda está em disputa. Só que ao aceitar discutir mais sobre Donbas num futuro encontro, a Ucrânia mostra que não são intransigentes em relação ao futuro da região, o que para mim é óptimo. Eu escrevi antes num comentário do Facebook (em foi num post meu por isso sei que posso encontrá-lo novamente) que existem 4 lados neste conflito, cada um com suas próprias necessidades e próprios objectivos: Ucrânia, Rússia, a Crimeia e o Donbas. Mas claramente algo precisa ser feito para estas duas regiões quando a Rússia estiver fora da Ucrânia e a guerra terminar; e como seria óbvio de concluir, eu também tenho as minhas ideias sobre esse algo:
  1. A Rússia não vai aceitar de animo leve perder Sevastópol, diria mesmo que muito dificilmente aceita essa perda. Eu penso que esta é a única base naval deles em águas quentes profundas, por isso é fundamental para a Frota do Mar Negro e até mesmo para toda a Marinha Russa. Sim, a base estava arrendada à Ucrânia desde há muito tempo (e renovaram o arrendamento pouco tempo antes da anexação em 2014), mas é preciso ver que a Rússia preferiu invadir e depois iniciar uma guerra do que construir uma nova base noutro porto do Mar Negro e mudar-se de Sevastópol. Então eu creio que há uma chance bastante reduzida de que a Crimeia seja devolvida à Ucrânia, pois isso significa que a Rússia tem de sair (um aspecto da neutralidade, do parágrafo anterior, é que a Ucrânia não pode acolher bases militares estrangeiras no seu território).
  2. Ainda assim, as pessoas podem e devem ser ouvidas em relação ao seu próprio futuro. Mas como realizar uma consulta popular agora, após 8 anos de ocupação e o desalojamento de parte da população anterior? Certamente um novo referendo a ser realizado num futuro próximo, mesmo com a presença de observadores internacionais, vai originar um resultado pró-Rússia. A maioria da população pró-Ucrânia e os Tartars que moravam na Crimeia até 2014, foi deslocada para fora da península e novas gentes oriundas da Rússia mudaram-se para lá entretanto. Estou convencido que a actual população é com certeza muito mais pró-Rússia do que era há 8 anos.
  3. O mesmo não acontece no Donbas, uma vez que os separatistas nunca controlaram toda a região. Acredito que no Donbas haja uma verdadeira divisão, quiçá mesmo 50-50. Mas também neste caso creio que realizar um referendo num futuro próximo, considerando que muitos cidadãos receberam entretanto passaporte russo e, tal como na Crimeia, mudaram-se para o Donbas gentes oriundas da Rússia, vai dar em controvérsia pois todo o processo terá falhas (o mais certo serão acusações dos 2 lados que pessoas de fora estarão a votar, tal como aconteceu em 2014).
  4. Então que opções temos? Se fosse eu a mandar, ou alguém me escutasse, eu recomendava uma intervenção de uma força da ONU na Crimeia e no Donbas, uma verdadeira força internacional de manutenção da paz. Pode conter elementos de países da NATO, mas não pode ser uma missão da NATO nem ser uma força constituída exclusivamente por membros da Aliança (ou seja, não pode ser como a KFOR). Não fui verificar os detalhes da missão da NATO no Kosovo, mas os objectivos da missão da ONU seriam semelhantes: trazer paz e estabilidade ao Donbas e à Crimeia e ter uma terceira parte a controlar todos os lados intervenientes. Uma vez que a força esteja mobilizada no terreno e em controlo da situação, haveria um longo período de investigação, envolvendo todos os lados e também uma grande equipa observadores internacionais mandatados pela ONU, para fazer um levantamento dos habitantes originais (pré-2014) das 2 regiões (ainda vivos, é claro), incluindo onde eles se encontram agora. A esses habitantes deve ser dada a opção de votar num próximo referendo (independentemente de quererem voltar ou não, pois isso também vai depender do resultado do mesmo). Este referendo a ser feito na Crimeia e no Donbas, precisa ser também monitorizado por observadores internacionais (pode ser outra equipa, a OCDE por exemplo, também mandatada pela ONU) e o mesmo tem de se realizar sob o controla da força de paz da ONU (para tentar evitar ao máximo possíveis interferências de qualquer uma das partes). Para mim, o referendo deveria ter 4 opções: regressar à Ucrânia como antes de 2014; ingressar na Ucrânia como uma região autónoma; independência; ingressar na Federação Russa como uma república). E esse referendo decidiria o futuro dessas 2 regiões, embora fosse depois necessário outro período de transição para implementar e fortalecer as instituições, novas ou antigas, e permitir um novo movimento de população que não pretenda fazer parte deste novo futuro.
    Ao fim de alguns anos, a missão da ONU acabaria e a força militar de paz sairia. Isso pode demorar vários anos, basta ver que a KFOR ainda se encontra no Kosovo desde 1999.
Queria só deixar um comentário sobre o aparecimento surpresa do Roman Abramovich nesta ronda de negociações. Foi noticiado que ele tinha sido envenenado no início do mês aquando de outras conversas de paz, e agora está confirmado o seu envolvimento. De qualquer forma, essa notícia do suposto envenenamento é estranha, pois a uma certa altura um conselheiro do presidente Zelenskyy disse nada tinha acontecido e todos os membros da delegação estavam a trabalhar em perfeita saúde. A notícia também falava de uma reunião em Kyiv mas nessa altura as sessões estavam a decorrer na Bielorrússia. Desde que ouvi esta notícia e fui ler mais sobre a origem que achei tudo muito estranho. Acho que tenho de fazer uma investigação sobre isso numa futura reflexão.

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