Há 2 anos atrás disse que queria ler este livro e muito convenientemente acabei de o ler há 2 dias atrás, ou seja dias antes de mais um 25 de Abril. Até poderia ser de propósito mas não foi. Já tinha comprado o livro em Novembro do ano passado mas só tive vontade de ler agora, o meu sub-consciente certamente a dizer-me que o momento era o adequado.
E só para esclarecer li a edição portuguesa, apenas usei a imagem duma holandesa porque já tinha usado a outra.
Gostei muito mais deste livro que o anterior e este também não é um romance.
Escrito entre Abril de 1974 e Setembro de 1975 é, tal como diz o título deste post, um olhar diferente do habitual do que estamos habituados sobre este período. Aliás sobre Portugal pois como os holandeses conheciam pouco do país, a primeira metade do livro é uma desconstrução da história do país, apoiada sobretudo nas obras de Oliveira Martins e não na versão oficial do Estado Novo.
Rentes de Carvalho fala na própria pessoa pois ele cresceu e estudou em Portugal durante o regime de Salazar e deslocou-se ao país logo em Abril de 74 para cobrir a revolução. Mas sendo uma pessoa do povo e estando fora há vários anos, ele pode ver este período duma maneira que poucos jornalistas ou escritores contemporâneos o podem fazer.
Eu fiquei a saber de acontecimentos dos quais nunca tinha ouvido falar e tendo em conta as obras e artigos de jornais citados, ainda para mais a proximidade temporal aos eventos descritos, acredito que são verdade, na visão de Rentes de Carvalho. Acrescentei este ponto porque nós damos sempre a nossa própria versão dos factos e ele sendo um escritor acrescenta a sua opinião, logo outras pessoas podem discordar do texto descrito mas sem desmentir os factos a que ele alude.
Deixo aqui umas passagens que mais me ficaram na retina:
Almoço lá um dia na companhia de um comunista ex-membro do grupo de sabotadores da ARA e um dos responsáveis pelo ataque à base aérea de Tancos em Março de 1971. Preso pela PIDE/DGS conta com horrível detalhe as torturas que lhe infligiram, dias e noites em pé sofrendo a "estátua", os torcionários fazendo-lhe ouvir gritos, dizendo-lhe que a mulher e a filhinha de quinze meses, presas com ele, estavam a ser torturadas na sala ao lado. (...) Tinha a impressão de que ossos do crânio se encontravam espalhados pelo chão e tentava arrepanhá-los. Os guardas riam-se, gritavam-lhe que sabiam muito bem que andava à procura dos ossos da cabeça, mas que um cão já os tinha comido. Levado a julgamento, lê perante o juiz um longo requisitório que vai ter como consequência uma intervenção feroz do procurador da República e um aumento da pena.
(...)
De uma mesa próxima um homem com cerca de quarenta anos, irrepreensivelmente vestido, levanta-se e vem até nós. Aperta a mão do meu companheiro e congratula-o, deseja-lhe felicidades, falam ainda um momento, ambos sorridentes e, depois, com outro aperto de mão, a mim um ligeiro aceno de cabeça, o homem volta para a sua mesa.
- Foi ele o procurador da República no meu julgamento. Agora é juiz.
Estranho país, estranha gente. Delicioso país onde ainda há lugar para os que, ingénuos como eu, se pasmem.
Do que se queixam, uns e outros, é que o ministro (dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares) tenha nomeado para algumas embaixadas amigos e correligionários seus, "que não são da carreira", para eles uma barbaridade, crime de lesa-casta.
E assim estranhamente, um regime que se quer revolucionário, democrático e de um socialismo quase radical, ainda é representado pelo mundo fora pelo mesmo grupo de homens que, ao longo que quatro décadas, prestou vassalagem fiel às ideias de Salazar e Caetano.
Incoerência daqueles primeiros tempos de uma mudança, pode dizer-se, tipicamente portuguesa: o gabinete de ambos os oficiais é vizinho do de Feytor Pinto, desde há muito director-geral da Informação do regime anterior.
Playboy quinquagenário, Feytor Pinto parlamentara a rendição de Caetano no 25 de Abril e era mantido no lugar "por amizade de Spínola". E o povo a pensar que a revolução já tinha chegado e tudo virara à esquerda.
Além da estátua de Salazar, que por desleixo ou esquecimento ainda se encontrava no jardim do Palácio Foz, onde se instalara o ministério (da Comunicação Social), a nota mais bizarra era dada pelo ambiente dos corredores: neles se cruzavam velhas secretárias lacrimejantes com delegados socialistas que, interrogados, de boa vontade informavam estarem ali para "tomar conta do ministério".
Com uma brusquidão de modo comparável à de 10 cães que disputam um único osso, abriam a porta de gabinetes e perguntavam cautelosamente para dentro:
- Trabalham cá militares?
Se a resposta era negativa, entravam por ali dentro, anotavam o nome dos ocupantes, mandavam-nos sair e trancavam a porta, em nome da aurora socialista.
Como por toda a parte se encontram pintados os seus símbolos e slogans, o MRPP vai ser maliciosamente baptizado "Movimento Revolucionários dos Pintores de Paredes". O humor felizmente esfuzia.
(...)
Chovem anedotas. Conta-se às gargalhadas o caso do director do Panteão Nacional, escondido durante 3 dias sob o túmulo de um rei, descoberto porque ao adormecer ressonara, assustando os soldados que o procuravam.
Oiço uma vendedeira de jornais retorquir a um cliente que, esperançado, lhe diz que tudo vai mudar: "Muda nada! Sabe que mais? Se a merda fosse dinheiro os pobres nasciam sem cu!"
E só para esclarecer li a edição portuguesa, apenas usei a imagem duma holandesa porque já tinha usado a outra.
Gostei muito mais deste livro que o anterior e este também não é um romance.
Escrito entre Abril de 1974 e Setembro de 1975 é, tal como diz o título deste post, um olhar diferente do habitual do que estamos habituados sobre este período. Aliás sobre Portugal pois como os holandeses conheciam pouco do país, a primeira metade do livro é uma desconstrução da história do país, apoiada sobretudo nas obras de Oliveira Martins e não na versão oficial do Estado Novo.
Rentes de Carvalho fala na própria pessoa pois ele cresceu e estudou em Portugal durante o regime de Salazar e deslocou-se ao país logo em Abril de 74 para cobrir a revolução. Mas sendo uma pessoa do povo e estando fora há vários anos, ele pode ver este período duma maneira que poucos jornalistas ou escritores contemporâneos o podem fazer.
Eu fiquei a saber de acontecimentos dos quais nunca tinha ouvido falar e tendo em conta as obras e artigos de jornais citados, ainda para mais a proximidade temporal aos eventos descritos, acredito que são verdade, na visão de Rentes de Carvalho. Acrescentei este ponto porque nós damos sempre a nossa própria versão dos factos e ele sendo um escritor acrescenta a sua opinião, logo outras pessoas podem discordar do texto descrito mas sem desmentir os factos a que ele alude.
Deixo aqui umas passagens que mais me ficaram na retina:
Almoço lá um dia na companhia de um comunista ex-membro do grupo de sabotadores da ARA e um dos responsáveis pelo ataque à base aérea de Tancos em Março de 1971. Preso pela PIDE/DGS conta com horrível detalhe as torturas que lhe infligiram, dias e noites em pé sofrendo a "estátua", os torcionários fazendo-lhe ouvir gritos, dizendo-lhe que a mulher e a filhinha de quinze meses, presas com ele, estavam a ser torturadas na sala ao lado. (...) Tinha a impressão de que ossos do crânio se encontravam espalhados pelo chão e tentava arrepanhá-los. Os guardas riam-se, gritavam-lhe que sabiam muito bem que andava à procura dos ossos da cabeça, mas que um cão já os tinha comido. Levado a julgamento, lê perante o juiz um longo requisitório que vai ter como consequência uma intervenção feroz do procurador da República e um aumento da pena.
(...)
De uma mesa próxima um homem com cerca de quarenta anos, irrepreensivelmente vestido, levanta-se e vem até nós. Aperta a mão do meu companheiro e congratula-o, deseja-lhe felicidades, falam ainda um momento, ambos sorridentes e, depois, com outro aperto de mão, a mim um ligeiro aceno de cabeça, o homem volta para a sua mesa.
- Foi ele o procurador da República no meu julgamento. Agora é juiz.
Estranho país, estranha gente. Delicioso país onde ainda há lugar para os que, ingénuos como eu, se pasmem.
Do que se queixam, uns e outros, é que o ministro (dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares) tenha nomeado para algumas embaixadas amigos e correligionários seus, "que não são da carreira", para eles uma barbaridade, crime de lesa-casta.
E assim estranhamente, um regime que se quer revolucionário, democrático e de um socialismo quase radical, ainda é representado pelo mundo fora pelo mesmo grupo de homens que, ao longo que quatro décadas, prestou vassalagem fiel às ideias de Salazar e Caetano.
Incoerência daqueles primeiros tempos de uma mudança, pode dizer-se, tipicamente portuguesa: o gabinete de ambos os oficiais é vizinho do de Feytor Pinto, desde há muito director-geral da Informação do regime anterior.
Playboy quinquagenário, Feytor Pinto parlamentara a rendição de Caetano no 25 de Abril e era mantido no lugar "por amizade de Spínola". E o povo a pensar que a revolução já tinha chegado e tudo virara à esquerda.
Além da estátua de Salazar, que por desleixo ou esquecimento ainda se encontrava no jardim do Palácio Foz, onde se instalara o ministério (da Comunicação Social), a nota mais bizarra era dada pelo ambiente dos corredores: neles se cruzavam velhas secretárias lacrimejantes com delegados socialistas que, interrogados, de boa vontade informavam estarem ali para "tomar conta do ministério".
Com uma brusquidão de modo comparável à de 10 cães que disputam um único osso, abriam a porta de gabinetes e perguntavam cautelosamente para dentro:
- Trabalham cá militares?
Se a resposta era negativa, entravam por ali dentro, anotavam o nome dos ocupantes, mandavam-nos sair e trancavam a porta, em nome da aurora socialista.
Como por toda a parte se encontram pintados os seus símbolos e slogans, o MRPP vai ser maliciosamente baptizado "Movimento Revolucionários dos Pintores de Paredes". O humor felizmente esfuzia.
(...)
Chovem anedotas. Conta-se às gargalhadas o caso do director do Panteão Nacional, escondido durante 3 dias sob o túmulo de um rei, descoberto porque ao adormecer ressonara, assustando os soldados que o procuravam.
Oiço uma vendedeira de jornais retorquir a um cliente que, esperançado, lhe diz que tudo vai mudar: "Muda nada! Sabe que mais? Se a merda fosse dinheiro os pobres nasciam sem cu!"
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