É bastante curioso que na última semana tenhamos começado a jogar à Bisca dos Três aqui em casa. Ensinei as regras ao Sebastião e temos jogado regularmente. É curioso porque quem me ensinou a jogar à Bisca, e com quem jogava várias vezes em pequeno, foi a minha avó Amélia, com quem passei a maioria da minha infância.
Nos últimos tempos tenho resistido a dizer que foi ela quem me criou porque não foi apenas ela, mas na verdade, eu fiquei com os meus avós maternos desde os meus 7 meses e meio (ou algo parecido) até aos quase 15 anos, quando fui estudar para Aveiro e deixei de estar na mesma casa com eles durante a semana.
Por isso muitos momentos e recordações de infância são com a minha avó, que não trabalhava e estava (quase) sempre por casa, pronta para atender às minhas necessidades e ajudar.
Lembro-me de vir da escola à tarde e já ir gritando pelo caminho fora "Bóóó! Tou cheio de fome!" e ela começar a fazer umas torradas (com uma torradeira de fogão), muitas, para eu comer. As memórias sobre comida são das que mais me recordo, pois tendo passado mais de metade da sua vida com muita escassez, ela tinha o hábito de compensar a quantidade, pois quando eu cresci já havia muito e de quase tudo. E não podíamos deixar estragar! Enquanto se criou porcos em casa, os restos faziam sentido mas depois que deixou de haver porcos não era mais preciso guardar restos, só que ela nunca cozinhou menos (eventualmente cozinhava ainda mais conforme fomos crescendo). Lembro-me bem de chegar uma sexta-feira à noite a casa e ter um tacho de comida que dava para mais de 5 pessoas e ela dizer "É para ti e para o teu irmão". Não é difícil de perceber porque tenho excesso de peso mas quase nenhum problema de saúde associado a isso: simplesmente estou habituado desde novo a comer muito.
Noutro dia com a minha mãe, falávamos de comidas que ela fazia, como as costelas de porco com arroz de feijão, que quando era mais novo era feito com carne da salgadeira e mais tarde carne "fresca" comprada no talho e de como era diferente o sabor. Isto apesar de quando ser novo eu não gostar de carne da salgadeira por ser mais dura e seca. Durante vários anos eu e o meu irmão dizíamos que não gostávamos de carne de porco e ela quando fazia febras grelhadas mentia-nos dizendo que eram de vitela para comermos 😁.
Mas também me recordo de rezarmos o terço em noites de trovoada, ao redor da fogueira quando a luz faltava, que era quase sempre que havia mau tempo e enquanto esperávamos o meu avô chegar a casa das bombas de gasolina que ele fechava depois das 22:00 ou 23:00.
Agora também lembro da forma peculiar que ela tinha em virar às costas às comadres enquanto continuava a falar para lhes dar a entender, de forma pouco subtil, que já estava farta da conversa, apesar de não a terminar falando mas simplesmente quando entrava em casa a meio de uma frase...
E as estórias de antes, nomeadamente das bruxas que vieram a casa transformadas em pássaros grandes para lhes roubar a bebé, do lobisomem que foi apanhado numa montaria pelos aldeões e de como ela o ouvia ganir, dos bois gigantes tão altos como casas que ela encontrou numa alvorada ao pé da capela. Tudo estórias que me deixavam crente no supernatural mas que a minha prima Filó bem argumentava que esses relatos só existiram até aparecer a luz eléctrica e as sombras serem empurradas apenas para pequenos cantos recônditos...
Foi uma mulher que passou, como muitas que nasceram nos anos 20 do século passado, por várias tribulações. Foi mãe solteira de 2 crianças, depois mais 5 já com o meu avô. Teve de cuidar das crianças e dos animais muitas vezes sozinha, pois o meu avô trabalhava fora o dia todo, ou longe da terra, mesmo no estrangeiro pois foi para França e Alemanha. Viu 3 filhos irem para a guerra do Ultramar, todos para a Guiné que gerava mais medo nos conterrâneos por ser onde tinham falecido mais filhos da terra. Viu os 3 mais novos partirem para longe (minha mãe para França e os outros para o Brasil). Passou por varias doenças e operações, e de acordo com o meu avô um cancro mas na altura os médicos nunca confirmaram abertamente. Teve de enterrar um filho mais tarde. Também acabou por ver aparecer as divisões na família, coisa comum em muitas outras mas a nossa costumava orgulhar-se de ser muita unida...
Como no tempo que passei com ela, já eram outros tempos em Portugal, ela dizia sempre "O tempo da hipocrisia já acabou" e levantava a voz fosse com quem fosse, quando era preciso. Como ela tomava conta dos papéis de um regadio comum, passava muito tempo a pôr ordem nas vontades das pessoas e a ter a certeza que toda a gente usava a água a que tinha direito e não haviam abusos. Uma vez chegou a ameaçar um cunhado que lhe rachava a cabeça com uma enxada quando ele lhe faltou ao respeito; e eu, assim como toda a gente incluíndo o cunhado, tenho a certeza que ela o faria!
Os últimos anos já foram mais chatos, mas nem vale a pena pensar isso. Vale a pena sempre relembrar as coisas positivas e muitas houveram. A cada minuto que passa me vou recordando de tantas boas memórias e assim continuará durante os próximos tempos.
Acabo com as palavras do Cesar Pedro, que deixou no meu mural do Facebook, e que servem como um excelente epitáfio:
Simpática, sorridente sempre bem disposta.
Era contagiante a alegria que trazia com ela.
Que privilégio tive em poder ter partilhado tantos e bons momentos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Opina à tua vontade