domingo, março 22, 2020

COVID-19 e as diferentes taxas de mortalidade

Desde que comecei a estudar mais a fundo, e a escrever, sobre a COVID-19 que tenho mencionado uma taxa de mortalidade bem mais elevada que a normalmente usada (crude Case Fatality Rate, calculada dividindo total de mortes por total de casos infectados) pois tenho sobretudo me baseado no cálculo baseado em casos encerrados (dividindo o total de mortes pelo total de mortes + casos recuperados). E sei que muita gente não gosta que eu fale disso porque para alem de ser muito superior ao que os media e líderes, incluindo a OMS/WHO, têm mencionado, este valor pinta um cenário muito mais negativo do que todos desejaríamos.

E recentemente foi publicado este estudo, "Estimating clinical severity of COVID-19 from the transmission dynamics in Wuhan, China", que aponta uma taxa estimada de mortalidade de 1,4% na cidade de Wuhan, onde o surto surgiu e que toma particular relevo a esta altura pois há 4 dias consecutivos (à data em que escrevo) que não são registados novos casos (confirmados ou suspeitos) na cidade e na província de Hubei.
Mas porque é que este estudo refere uma taxa de mortalidade de 1,4% se quando a CFR era (à data do estudo) de 4,5% e a de casos resolvidos de 11%? Porque este valor é o que os autores designam de "symptomatic case fatality risk" (sCFR), que pode ser explicado como a probabilidade de morrer depois de apresentar sintomas de COVID-19. Ou seja é uma forma de olhar para as mortes um pouco diferente, e considerando sintomas e não testes.
Apesar do estudo não referir isso claramente, pode-se simplificar dizendo que o triplo das pessoas que testaram positivo para o virus SARS-CoV-2, apresentam sintomas da doença, daí o risco de morte (ou taxa de mortalidade) ser inferior aos valores calculados com base nos valores oficiais de infectados.

Mas confirma-se que existe muita mais gente infectada mas que não foi testada? Bem disso não há dúvidas nenhumas pois na grande maioria dos países, e mesmo na China, não se testou toda a gente. Ainda agora com o número de casos a "explodir" em vários países europeus, as autoridades estão a testar cada vez menos. Isso vai resultar numa taxa de mortalidade superior pois o total que serve de base de cálculo será mais baixo que o real. Mas como ninguém quer testar massivamente (como fez a Coreia do Sul) ficaremos sempre na dúvida.
A Coreia do Sul desde muito cedo que testou muita gente, mais de 210 mil até há 2 semanas atrás. Desses 210 mil, tinham cerca de 8000 infectados. A Coreia do Sul foi durante algum tempo o segundo país com mais gente infectada até ser ultrapassada por Itália, EUA, Espanha, Alemanha, Irão e França. Todos estes, países que tiveram os primeiros infectados depois, e todos eles que não testaram tanto como a Coreia (excepção talvez seja a Alemanha mas não consigo encontrar fontes sobre o número de testes). A situação da Coreia para mim diz-me que não devem ser assim tantos os infectados e com sintomas mas que não foram testados. Julgo que se fosse assim tão linear, e tendo em conta o número de testes que a Coreia fez, eles teriam um número bem maior de infectados, olhando para o que está a acontecer na Europa.

Tem no entanto um outro caso que pode servir de exemplo. O navio de cruzeiro Diamond Princess. Como foi um navio que teve o surto, e é sabido o total de pessoas (tripulação e passageiros), podemos usar como base para ter umas certas percentagens. Ora o navio tinha 3711 pessoas (a população) das quais 712 testaram positivo. Isso representa uma taxa de infecção de 19,2% do total. Não sei quantos testes foram feitos, mas presumo que pessoas com sintomas tenham sido testadas. Dos 712, morreram até à data 8 (15 ainda estão em estado crítico e poderá portanto haver mais mortes) o que representa uma taxa de mortalidade CFR de 1,1% e uma taxa de mortalidade de casos resolvidos de 1,4%.
O caso do navio tem valores muito próximos a taxa sCFR do estudo acima citado.
No entanto para mim o caso do navio é o de uma situação completamente controlada. O navio ficou em quarentena no Porto de Yokohama, e as pessoas foram devidamente testadas e tratadas. Bate certo com o que aconteceu também na Coreia que tem uma taxa CFR de 1,2% e nos casos resolvidos de 3%. É mais uma prova de quando o surto está controlado, o impacto é muito inferior.

Esta taxa baixa sCFR estimada pelo recente estudo não tem grande discussão. Mas o que me preocupa, é que esta taxa faça com que autoridades mundiais desvalorizem (ainda mais) o impacto da pandemia. Porque um problema que eu vejo é que a grande maioria dos estudos detalhados sobre o surto e o impacto da COVID-19 foram feitos na China, no epicentro da mesma, com dados de finais de Fevereiro. Mas a situação que se vive agora aqui na Europa já é bastante diferente. A taxa de mortalidade CFR em Itália é no dia de hoje (22-Mar) 9,3% e a taxa de mortalidade nos casos resolvidos é 44%. Vêem a diferença? E sim, é verdade que já não testam todos em Itália mas mesmo que extrapolemos a diferença em Wuhan, a taxa sCFR (que considera todos que tenham sintomas) será de 3,1%, mais do dobro de Wuhan!
E porque é que em Itália é assim? Porque mesmo com medidas muito extremas e um lockdown, não temos tropa na rua a empurrar pessoas para dentro de casa, e não se constroem 2 novos hospitais em dias para tratar os doentes da COVID-19. O sistema de saúde, sobretudo no Norte de Itália não consegue atender todos que precisam, por isso morre mais gente porque não se consegue tratar todos.
E a Espanha está a ir pelo mesmo caminho, e depois será França, e depois os Países Baixos, e assim sucessivamente...

A Europa achava em finais de Janeiro que a doença dificilmente chegaria aqui e quando ela chegou, demoraram a reagir, permitindo o número de infectados chegar a um valor tal que o máximo controlo da pandemia, como afirmou o Mark Rutte, PM daqui, é impossível. Com testes em massa e medidas apertadas no início teria sido possível controlar, como o fizeram Coreia e Japão, que continuam a ter novos infectados mas na casa das dezenas ao fim de várias semanas. Aqui na Europa os que ainda só têm novos casos diários na casa das centenas, é porque não chegaram ao pico.
No tempo de agora ainda se pergunta se deve-se fazer um lockdown ou não. Isso agora é uma pergunta estúpida no meu entender. Essa pergunta colocava-se há 1 mês atrás, e o lockdown até poderia ser evitado com medidas bastante apertadas (nem Coreia nem Japão fizeram lockdown). Mas agora? Agora o lockdown é inevitável. A COVID-19 e o número de doentes e mortes a isso obrigará.
O que mais temo é que na vez de 3 ou 4 semanas de lockdown que poderia ter sido feito mais cedo, para realmente conter a epidemia e a velocidade de propagação da mesma, vamos precisar de 8 ou 12 semanas e mais tarde, quando os serviços de saúde já estão enfraquecidos (ou perto do colapso). Depois quero ver do que vale tentar salvar a economia (é que a economia são as pessoas, uma não existe sem a outra)...

1 comentário:

  1. https://ourworldindata.org/coronavirus Tens aqui uns dados sobre os testes que a alemanha realizou e não só.
    A China voltou a ter casos endémicos ao final de 3 dias https://www.businesstoday.in/current/world/china-1-local-covid-19-case-3-days-divert-international-flights/story/398953.html

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